O texto não é novo, mas hoje, no 131º Aniversário da Voz, fica aqui o meu contributo para o reforço dessa Instituição que (também) na educação marca a diferença. Parabéns Voz do Operário.
A Educação na Escola da Voz do Operário
A escolarização é genericamente
aceite como uma realidade natural, positiva e necessária para o indivíduo e
condição necessária para o desenvolvimento da sociedade em que se insere. O
estudo da história da escola enquanto instituição revela que esta não é uma verdade
linear. Os trabalhos académicos e ensaios são inúmeros e por vezes divergentes,
mas na sua globalidade revelam que a instituição escolar surge e cresce como
resposta às necessidades económicas da sociedade e em particular na
qualificação da mão-de-obra requerida pelas estruturas e mecanismos
capitalistas e constitui acima de tudo uma forma de reprodução e controlo
sociais.
Estando na Europa historicamente a
cargo da Igreja e mais tarde a cargo dos grandes comerciantes e industriais,
directamente ou através da gestão do Estado, as instituições escolares,
nomeadamente nas suas fases de massificação, procuram capacitar os alunos com
as competências que a sociedade espera que venham a desempenhar na vida adulta.
Esta é a origem da “escola dual” como agora se denomina, mas que há séculos
existe, e que pressupõe no essencial uma formação para os que irão liderar e
gerir e uma outra formação para os que irão obedecer e trabalhar.
A Escola da Voz do Operário, como
outras na época, surge na fase da industrialização e vem responder às carências
sentidas no que se refere à qualificação dos operários, neste caso da indústria
tabaqueira. O carácter singular da sua génese está noutra dimensão: neste caso particular
e (creio) único, não é o patronato a promover a criação da escola, nem como
aconteceu na época, as estruturas sindicais a oferecer esse “serviço” aos
operários. A génese da Escola da Voz do Operário está dentro da fábrica e surge
como iniciativa dos operários que sentem que a escola os capacitaria a si e aos
seus filhos com as ferramentas necessárias para reforçar a sua organização de
classe e lhes permitiria aumentar a capacidade reivindicativa face às
injustiças com que se confrontavam no seu trabalho e vida quotidiana. A
alfabetização, em primeiro lugar e a escolarização em geral, era entendida como
uma via para a melhoria das suas condições de vida e uma arma de defesa da
classe.
As escolas da Voz do Operário
cresceram e multiplicaram-se e foram sofrendo alterações ao longo dos anos, a
par com a sociedade portuguesa. O período negro da ditadura fascista acabou com
muitas escolas operárias e republicanas, mas não com todas, e a Voz do
Operário, a par de outras duas ou três, sobreviveram, ainda que com custos para
o ensino nelas praticado.
Hoje a sociedade é muito
diferente da de 1900. Cem anos de industrialização alteraram o perfil exigido
aos futuros “líderes” e “gestores” mas sobretudo modificaram o que a sociedade
espera do “novo operariado”. No entanto a instituição escolar permanece
praticamente inalterada no seu fundamental. Absorveu algumas novas tecnologias
enquanto recursos educativos, reviu conteúdos programáticos, alargando o seu
âmbito, duração e complexidade e tornou-se mais abrangente e democrática, mas
as suas práticas, métodos e pressupostos não foram, no essencial, alterados.
É nesta encruzilhada que a
singularidade da génese da Escola da Voz do Operário continua actual. A Escola
da Voz do operário não permanece igual à de 1900, mas também não mudou assim
tanto. Tendo sofrido evoluções, permaneceu, no essencial ao espírito que esteve
na sua origem: afirmando-se perante a sociedade, angariando reconhecimento
público que validasse a sua existência, mas respondendo em primeiro lugar às
necessidades sentidas pelos trabalhadores, feitos “novos operários”, muitos já
fora da fábrica e com acesso a uma cultura e formação superior à dos pioneiros,
mas que consideram insuficiente ou desadequada, face às suas expectativas, a
formação “elementar” disponibilizada pela generalidade das escolas públicas e
privadas.
Quando a Voz do Operário se
anuncia, como tantas vezes acontece, como uma escola diferente, e sem querer
estar a falar em nome de terceiros, é, pelo menos em parte, isto que está
subjacente a essa afirmação.
Mas esta não é uma afirmação que
se possa fazer gratuitamente, e a diferença da Escola da Voz do Operário apenas
continuará a existir enquanto as pessoas que nela trabalham e que da sua
comunidade fazem parte: professores, auxiliares e demais trabalhadores, mas
também os pais e encarregados de educação, forem fieis, agirem, defenderem e
exigirem essa diferença.
Esta diferença, gerada pela
necessidade da defesa da classe e da sua emancipação, com as devidas evoluções
mantém-se e traduz-se no funcionamento regular e quotidiano da escola.
A fidelidade a esse espírito
começa pela constituição da comunidade escolar. Muitas escolas operárias
defenderam que os filhos dos operários deveriam ter escolas próprias e
exclusivas, muitos outros, a quem o tempo veio dar razão, argumentaram que uma
escola só para filhos de operários e de mais camadas desfavorecidas da
população continuaria a ser uma escola exclusiva, que necessariamente
perpetuaria o estigma da pobreza e as carências inerentes a essa condição. A
escola deve assim ser profundamente inclusiva, em todas as dimensões: sexo,
físicas, psicológicas, culturais e económicas. A multiplicidade e diversidade
de perfis de alunos consciencializa-os para essa diversidade e fornece
ferramentas e oportunidades de aprendizagem enriquecedoras e integradoras.
Constituída a comunidade escolar
é necessário tomar consciência dos seus objectivos e funções. A questão a ser
colocada: para que serve e para que deve servir a escola não é pacífica e já
gerou inúmeros tratados. Mas face a esta pergunta não existem respostas
neutrais. Educar é uma actividade e um projecto político, no sentido em
constitui uma acção que projecta no futuro uma leitura colectiva face a uma
realidade desejada e à continuidade ou à transformação dessa realidade. Negar
esta interpretação do que é educar é também uma opção política, consciente ou
não.
Na Voz do Operário o projecto
educativo sempre viveu na tensão entre o seu projecto e as contingências da
realidade política e social portuguesa existentes em cada um dos momentos da
sua história: do período das urgências que estiveram na sua génese e que já
foram mencionadas à expansão verificada na Primeira República foi um ápice e nele
estão contidos os períodos de maior exuberância da educação em Portugal, a que
a Voz do Operário a par com dezenas de escolas da época não são alheias. A
partir de 1933 a ditadura do Estado Novo procura e em muitos casos consegue
destruir o ensino progressista existente, dotando o ensino de uma imensa carga
ideológica e fascizante, colocando as escolas ao serviço dos grandes grupos
capitalistas, com o objectivo de formar sobretudo operários com as competências
suficientes (e não mais que isso) requeridas para as áreas industriais e
comerciais e sobretudo trabalhadores obedientes, disciplinados e com o “sentido
patriótico do dever e abnegação”. Pobrezinhos mas honrados e respeitadores da
autoridade. Foram anos difíceis para o ensino da Voz do Operário e muitas
concessões foram feitas, tendo abdicado de parte significativa do seu projecto
educativo inicial.
Actualmente, a tensão entre o ideal e o
possível continua a fazer sentir-se. As crescentes exigências programáticas e o
enfase nos mecanismos de avaliação e selecção impostos pelo Ministério da
Educação chocam com as opções originais da Voz do Operário e perante os dois
pólos, as opções tomadas vacilam entre o desejável e o necessário, nem sempre
de forma clara ou coerente. A opção de uma educação transformadora da
realidade, uma educação inconformada com o presente, impregnada de espírito
crítico é dominante e constitui a linha oficial, embora a tolerância perante
práticas que contrariam este discurso continuem a existir. Ainda assim, a opção
generalizada por um método de ensino “diferente” do adoptado na globalidade das
restantes escolas marca de forma indelével as práticas educativas na Voz do
Operário. O Método da Escola Moderna constitui uma referência e uma prática que
não é em nada ingénua nem um artefacto decorativo.
As opções pedagógicas mais “profundas”
do modelo pedagógico do Movimento da Escola Moderna retiram do centro da acção
educativa os conteúdos e colocam-no no aluno em relação. O cerne da acção
educativa, o ponto de partida e de chegada é o aluno em relação com o mundo e
com os outros, é sobre essa dimensão do ser (por oposição ao ter) que a escola
irá actuar. Saber relacionar-se com os outros e com o mundo, numa atitude activa,
de descoberta e crítica é o eixo prioritário de desenvolvimento dos alunos da
Voz do Operário. É para desenvolver ao máximo estas competências que a Escola
da Voz do Operário serve. Tudo o resto, que não é pouco, vem por acréscimo. Esta
opção dá primazia aos processos face aos conteúdos (tão valorizados pelo
Ministério) e torna retira importância às avaliações sumativas, o que só por si
pode constituir um elemento de insegurança para alguns pais e professores que,
iludidos pelo aspecto concreto das notas, se esquecem que todos os números são
uma representação abstracta da realidade e que a objectividade da “nota” apenas
existe por ser toda a avaliação subjectiva e por essência, injusta, por
deficitária face à realidade. Assim, não se opta por educar para os resultados
(no sentido mensurável-quantitativo) mas sim para os processos (no sentido
integral-qualitativo).
Ao colocar o aluno no centro da
acção educativa, torná-lo o motor dessa acção, rejeita a primazia dos
conteúdos, e entrega à turma uma responsabilidade que na maior parte das salas
de aula é da responsabilidade das editoras de manuais escolares, e (por vezes) mediada
pelo professor. Uma importante responsabilidade que quando depositada no manual
escolar enquanto condutor das “lições” e da direcção e ritmo do
ensino-aprendizagem, é negada à turma. O primeiro passo para sermos
responsáveis por nós próprios é aprender a escolher para onde queremos ir. Se
negarmos essa oportunidade aos alunos, não é depois legítimo exigir que sejam
responsáveis pelos resultados desse processo de ensino-aprendizagem. Este
equilíbrio tão ténue entre liberdades e responsabilidades, individuais e
colectivas, são um eixo central da vivência quotidiana da turma e tornam-se
assim num dos eixos do currículo escolar. Os mecanismos de gestão dos
conflitos, de participação, constituem uma ferramenta que preenche o vazio
deixado pela menor directividade provocada pela ausência de manual escolar e
pelo método adoptado. A isto irá com o passar do tempo, das vivências e do
crescimento, acrescer a consciência de que o caminho pela aprendizagem é
determinado pelo grupo, com participação de todos e empenho de cada um na
gestão das relações que descobre e estabelece com o mundo e com os outros.
A profunda integração e
valorização da dimensão social interna constitui um eixo fundamental no
processo pedagógico e os mecanismos de auto e hétero avaliação responsabilizam
o aluno perante a turma e a turma perante cada aluno tornando consciente que o
progresso na aprendizagem é um processo partilhado e que o sucesso de cada um
passa pelo sucesso do grupo. São assim reforçados os valores de solidariedade e
cooperação em detrimento da competição e do “estrelato”
Para que o objectivo a que a
Escola da Voz do Operário se propõe seja atingível é necessário encontrar o
equilíbrio entre a liberdade e a responsabilidade, mas não basta, é necessário
que desperte nos alunos, que cresça e se torne em acção o desejo de aprender e
que lhes sejam fornecidas as ferramentas, os meios e os auxílios para que essa
tarefa se torne gratificante. Aqui surgem como determinantes, em primeiro
lugar, o grupo. Aprender, na Escola do Voz do Operário, é uma tarefa individual
que se realiza em equipa. É incentivado que cada um procure e descubra para
partilhar esse conhecimento com o grupo. Mas requer também um crescimento
individual, Ao professor cabe providenciar a presença dos recursos e disponibilizar
ao grupo os conhecimentos necessários à tarefa e monitorar o processo,
balizando objectivos e conteúdos, adequando-os ao grupo e organizando,
disponibilizando os recursos, gerando e gerindo as situações promotoras da
aprendizagem.
O trabalho de descoberta e aprendizagem do grupo,
conseguido através da aquisição de competências cada vez mais complexas nas
suas dinâmicas internas e com o exterior, ao invés de alcançar as certezas da
via única promove as dúvidas da multiplicidade de possibilidades abertas,
procurando-se a par com esse processo que sejam desenvolvidas as competências
necessárias à gestão das relações entre a criança e uma realidade que é
multifacetada e multicolor, e esta será, a par com as competências
interpessoais, uma “meta-aprendizagem” que se prolongará muito além da vida
escolar dos alunos da Voz do Operário. Ao contrário do que acontecia com as
crianças que frequentavam a escola em 1900, os actuais alunos, tal como os seus
educadores, não fazem a menor ideia das competências que lhes serão exigidas no
desempenho das futuras profissões, excepção feita a um conjunto de requisitos
que lhes será exigido na sua vida profissional e pessoal: relacionar-se com os
outros, aprender a aprender e saber decidir numa base individual e grupal.
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