O questionamento feito à escola tradicional, no que concerne às suas
funções e capacidades tem vindo a ser cada vez mais evidente e incisivo. As
razões para tal não são simples de apontar, mas enquadram-se, na sua maioria,
em três categorias:
- uma insatisfação geral com o modelo de sociedade em que vivemos, que
resulta em estilos de vida alienantes, em que as coisas e o ter monopolizaram o
tempo e o espaço, sem deixar espaço ao ser e às pessoas. Uma insatisfação
agravada pela não destruição do mito de que a escolarização permitia aceder a
uma profissão e a uma eventual ascensão sócio-económica. Uma evidência assente
no facto de que pela primeira vez temos uma geração que terá piores condições
de vida do que a que antecedeu.
- a criança torna-se cada vez mais o centro da família, muitas vezes
pelo facto de a infância se ter tornado um mercado e as crianças um
público-alvo muito apetecível, mas também pela valorização da própria vida, e
pelo crescente investimento económico e afectivo que é dirigido, pelas famílias,
às crianças.
- o surgimento de formas alterativas de organização e empreendedorismo social,
patente nos movimentos sociais, mas não só. A falência de fórmulas clássicas de
“fazer as coisas” abre caminhos a vias alternativas, de iniciativa individual e
colectiva que se afastam dos modelos capitalistas. Estes fenómenos têm-se
também observado na área da educação com o crescimento do ensino doméstico, mas
também do surgimento de novos colectivos, sejam cooperativas, associações ou
outros, muitos informais, que visam estabelecer vias alternativas e personalizadas
de fazer educação.
A recusa do modelo tradicional de escola, e das suas formas –
uniformização, sincronismo e padronização são nestas vias alternativas o padrão
adoptado. Busca-se e experimenta-se o alternativo, o diferente e muitas vezes
apenas por sê-lo: diferente e alternativo.
Esta recusa do modelo tradicional de escola corre no entanto o risco de
ser uma fuga para o abismo, em que falta de fundamentos pedagógicos sólidos
remetem para um experimentalismo não só ingénuo com pernicioso. A um sistema de
educação formatado e unidireccional, que desrespeita a individualidade,
corre-se o risco de enveredar por formas que recusam a educação, o ensino e
aprendizagem por deixarem o indivíduo, e aqui a preocupação maior são,
evidentemente, as crianças, num éden em que o vácuo de regras e sentidos resultante
da excisão de todo o processo educacional.
Estamos assim na tensão inerente ao eixo do centralismo absolutista do ideal
da instrução do final do séc. XVIII e uma liberdade pré-pedagógica resultante
da adopção de aleatórios educativos. E nesta tensão, que exige o respeito pelo
individuo, pela comunidade e pela globalidade da sociedade, há que ponderar o
sentido da educação. A educação que na sua origem etimológica orienta, cuida e
nutre. O respeito pelo individuo opõem-se a ignorá-lo enquanto ser social, e
educar é dotá-lo das ferramentas para que seja autónomo no contexto social em
que insere.
A recusa dos modelos tradicionais, provenientes do final do Sec. XVIII
e reformados à luz da revolução industrial não pode ser a recusa do saber
pedagógico, pois apesar das ténues evoluções verificadas nas escolas e salas de
aula, a pedagogia não terminou a sua história no inicio do sec. XX, bem pelo
contrário. O Séc. XX foi pródigo em pensamento e produção nesta área, e são inúmeros
os teóricos, mas também as realizações efectivas em torno de opções pedagógicas
fundamentadas cientificamente e de cariz progressista. Para nomear alguns, com
toda a injustiça que qualquer listagem acarretaria: Célestin
Freinet, John Dewey,
Paulo Freire,
Jean Piaget ,Maria
Montessori , mas também os portugueses Adolfo Lima, João de Barros, Agostinho da Silva, João de
Barros, Álvaro Viana de Lemos, Delfim Santos, Irene Lisboa, João de Barros. São entre muitos outros, nomes e
sobretudo obras que não se podem contornar em nome de uma qualquer recusa,
quando se pretende continuar a exigir uma educação “melhor” ou “diferente” do
que aquela que existe.
A recusa do modelo dominante, com as suas características homogeneizadoras
resulta ainda na fuga para o isolacionismo, como acontece com grande parte do
fenómeno do movimento “home schooling” nos Estados Unidos da América, em que os
pais afastam da escola milhares de crianças como forma das famílias as “defenderem”,
seja de crianças de outras etnias, estratos socioeconómicos, episódios de violência
ou mesmo de teorias científicas como a evolução, uma teoria que contraria os
ensinamentos da Bíblia e que ofende as suas crenças e valores. A recusa da escola
enquanto instituição profundamente democrática cria nichos em que não apenas a
diferença é anulada, mas sobretudo as aprendizagens fundamentais do respeito
pela diferença do outro é inexistente. A recusa de um modelo de escola não pode
ser a aniquilação de um dos mais fundamentais processos educativos: o respeito
pelo outro e a aprendizagem que essa relação gera.
A diferença existe e traduz a primazia do respeito pelo outro como
sentido para todas as aprendizagens. A essência da liberdade e da
responsabilidade existem enquanto nos sabemos relacionar com o outro e com o
mundo, e é esse o papel fundamental de qualquer organização educativa: promover
e facilitar essa descoberta, da diferença no respeito por nós próprios e pelos
outros, com o sentido de responsabilidade que só a autonomia pode dar. Chame-se
escola, chame-se rua, comunidade ou aldeia, o espaço reservado por uma
sociedade à educação das suas crianças tem de ser um espaço de descoberta de
si, dos outros e do mundo. Tem de ser um espaço, um tempo e um processo de
construção de formas cooperativas de interpretação e resolução da sociedade e
do mundo de amanhã. Uma construção em que se reconhece no outro a diferença
como um factor enriquecer de ambos.
A escola por sua vez tem de se tornar o que ensina, um espaço de encontro
e partilha que se posiciona na comunidade e na sociedade como um espaço aberto
de debate, prática e reflexão. Numa sociedade complexa, em que as tensões
crescem fruto da ignorância e intolerância, a escola tem a responsabilidade de
assumir-se como parceiro desse encontro da diferença, encontrando pelo convite
à participação as vias da construção não apenas da comunidade em que se insere,
mas também da sua própria construção, sob pena de se tornar não só obsoleta e inútil,
como forma perversa e perniciosa de reproduzir os piores vícios que estiveram
na sua origem e que por vezes tão bem soube assimilar.
Queiram por fim ouvir esta história, relatada por Adolphe
Ferrière, outro pedagogo que viveu entre 1879 e 1960:
Um belo dia, deu o
diabo uma saltada à terra, e verificou, não sem despeito, que ainda cá se
encontravam homens que acreditassem no bem. Como não falta a Belzebú um fino
espírito de observação, pouco tardou em se aperceber que essas criaturas
apresentavam caracteres comuns: eram boas, e por isso acreditavam no bem; eram
felizes, e por consequências boas; viviam tranqüilas, e por isso eram felizes.
O diabo concluiu, do seu ponto de vista, que as coisas não iam bem, e que se
tornava necessário modificar isto.
E disse consigo: ‘A
infância é o porvir da raça; comecemos, pois, pela infância.’
E apresentou-se
perante os homens como enviado de Deus, como reformador da sociedade. ‘Deus’,
disse Belzebú, ‘exige a mortificação da carne, e é mister começar desde
criança. A alegria é pecado. Rir é uma blasfemia. As crianças não devem
conhecer alegrias nem risos. O amor de mãe é um perigo: efemina a alma dum
rapaz; é preciso separar mãe e filho, para que coisa alguma se oponha à sua
comunhão com Deus. Torna-se necessário que a juventude saiba que a vida é
esforço. Façam-na trabalhar (...); encham-na de aborrecimento. Que seja banido
tudo quanto possa despertar-lhe interesse: só é proveitoso o trabalho desinteressado;
se nele se mistura prazer, está tudo perdido!’
Eis o que disse o
diabo. A multidão, beijando a terra, exclamou:
- Queremos-nos
salvar! Que devemos fazer?
- Criem a escola.”
(...)
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