segunda-feira, 23 de março de 2015

A escola no centro da comunidade, a relação no centro da escola. E uma estória a terminar.



O questionamento feito à escola tradicional, no que concerne às suas funções e capacidades tem vindo a ser cada vez mais evidente e incisivo. As razões para tal não são simples de apontar, mas enquadram-se, na sua maioria, em três categorias:
- uma insatisfação geral com o modelo de sociedade em que vivemos, que resulta em estilos de vida alienantes, em que as coisas e o ter monopolizaram o tempo e o espaço, sem deixar espaço ao ser e às pessoas. Uma insatisfação agravada pela não destruição do mito de que a escolarização permitia aceder a uma profissão e a uma eventual ascensão sócio-económica. Uma evidência assente no facto de que pela primeira vez temos uma geração que terá piores condições de vida do que a que antecedeu.
- a criança torna-se cada vez mais o centro da família, muitas vezes pelo facto de a infância se ter tornado um mercado e as crianças um público-alvo muito apetecível, mas também pela valorização da própria vida, e pelo crescente investimento económico e afectivo que é dirigido, pelas famílias, às crianças.
- o surgimento de formas alterativas de organização e empreendedorismo social, patente nos movimentos sociais, mas não só. A falência de fórmulas clássicas de “fazer as coisas” abre caminhos a vias alternativas, de iniciativa individual e colectiva que se afastam dos modelos capitalistas. Estes fenómenos têm-se também observado na área da educação com o crescimento do ensino doméstico, mas também do surgimento de novos colectivos, sejam cooperativas, associações ou outros, muitos informais, que visam estabelecer vias alternativas e personalizadas de fazer educação.
A recusa do modelo tradicional de escola, e das suas formas – uniformização, sincronismo e padronização são nestas vias alternativas o padrão adoptado. Busca-se e experimenta-se o alternativo, o diferente e muitas vezes apenas por sê-lo: diferente e alternativo.
Esta recusa do modelo tradicional de escola corre no entanto o risco de ser uma fuga para o abismo, em que falta de fundamentos pedagógicos sólidos remetem para um experimentalismo não só ingénuo com pernicioso. A um sistema de educação formatado e unidireccional, que desrespeita a individualidade, corre-se o risco de enveredar por formas que recusam a educação, o ensino e aprendizagem por deixarem o indivíduo, e aqui a preocupação maior são, evidentemente, as crianças, num éden em que o vácuo de regras e sentidos resultante da excisão de todo o processo educacional.
Estamos assim na tensão inerente ao eixo do centralismo absolutista do ideal da instrução do final do séc. XVIII e uma liberdade pré-pedagógica resultante da adopção de aleatórios educativos. E nesta tensão, que exige o respeito pelo individuo, pela comunidade e pela globalidade da sociedade, há que ponderar o sentido da educação. A educação que na sua origem etimológica orienta, cuida e nutre. O respeito pelo individuo opõem-se a ignorá-lo enquanto ser social, e educar é dotá-lo das ferramentas para que seja autónomo no contexto social em que insere.
A recusa dos modelos tradicionais, provenientes do final do Sec. XVIII e reformados à luz da revolução industrial não pode ser a recusa do saber pedagógico, pois apesar das ténues evoluções verificadas nas escolas e salas de aula, a pedagogia não terminou a sua história no inicio do sec. XX, bem pelo contrário. O Séc. XX foi pródigo em pensamento e produção nesta área, e são inúmeros os teóricos, mas também as realizações efectivas em torno de opções pedagógicas fundamentadas cientificamente e de cariz progressista. Para nomear alguns, com toda a injustiça que qualquer listagem acarretaria: Célestin Freinet, John Dewey, Paulo Freire, Jean Piaget ,Maria Montessori , mas também os portugueses Adolfo Lima, João de Barros, Agostinho da Silva, João de Barros, Álvaro Viana de Lemos, Delfim Santos, Irene Lisboa, João de Barros. São entre muitos outros, nomes e sobretudo obras que não se podem contornar em nome de uma qualquer recusa, quando se pretende continuar a exigir uma educação “melhor” ou “diferente” do que aquela que existe.
A recusa do modelo dominante, com as suas características homogeneizadoras resulta ainda na fuga para o isolacionismo, como acontece com grande parte do fenómeno do movimento “home schooling” nos Estados Unidos da América, em que os pais afastam da escola milhares de crianças como forma das famílias as “defenderem”, seja de crianças de outras etnias, estratos socioeconómicos, episódios de violência ou mesmo de teorias científicas como a evolução, uma teoria que contraria os ensinamentos da Bíblia e que ofende as suas crenças e valores. A recusa da escola enquanto instituição profundamente democrática cria nichos em que não apenas a diferença é anulada, mas sobretudo as aprendizagens fundamentais do respeito pela diferença do outro é inexistente. A recusa de um modelo de escola não pode ser a aniquilação de um dos mais fundamentais processos educativos: o respeito pelo outro e a aprendizagem que essa relação gera.
A diferença existe e traduz a primazia do respeito pelo outro como sentido para todas as aprendizagens. A essência da liberdade e da responsabilidade existem enquanto nos sabemos relacionar com o outro e com o mundo, e é esse o papel fundamental de qualquer organização educativa: promover e facilitar essa descoberta, da diferença no respeito por nós próprios e pelos outros, com o sentido de responsabilidade que só a autonomia pode dar. Chame-se escola, chame-se rua, comunidade ou aldeia, o espaço reservado por uma sociedade à educação das suas crianças tem de ser um espaço de descoberta de si, dos outros e do mundo. Tem de ser um espaço, um tempo e um processo de construção de formas cooperativas de interpretação e resolução da sociedade e do mundo de amanhã. Uma construção em que se reconhece no outro a diferença como um factor enriquecer de ambos.
A escola por sua vez tem de se tornar o que ensina, um espaço de encontro e partilha que se posiciona na comunidade e na sociedade como um espaço aberto de debate, prática e reflexão. Numa sociedade complexa, em que as tensões crescem fruto da ignorância e intolerância, a escola tem a responsabilidade de assumir-se como parceiro desse encontro da diferença, encontrando pelo convite à participação as vias da construção não apenas da comunidade em que se insere, mas também da sua própria construção, sob pena de se tornar não só obsoleta e inútil, como forma perversa e perniciosa de reproduzir os piores vícios que estiveram na sua origem e que por vezes tão bem soube assimilar.

Queiram por fim ouvir esta história, relatada por Adolphe Ferrière, outro pedagogo que viveu entre 1879 e 1960:
Um belo dia, deu o diabo uma saltada à terra, e verificou, não sem despeito, que ainda cá se encontravam homens que acreditassem no bem. Como não falta a Belzebú um fino espírito de observação, pouco tardou em se aperceber que essas criaturas apresentavam caracteres comuns: eram boas, e por isso acreditavam no bem; eram felizes, e por consequências boas; viviam tranqüilas, e por isso eram felizes. O diabo concluiu, do seu ponto de vista, que as coisas não iam bem, e que se tornava necessário modificar isto.
E disse consigo: ‘A infância é o porvir da raça; comecemos, pois, pela infância.’
E apresentou-se perante os homens como enviado de Deus, como reformador da sociedade. ‘Deus’, disse Belzebú, ‘exige a mortificação da carne, e é mister começar desde criança. A alegria é pecado. Rir é uma blasfemia. As crianças não devem conhecer alegrias nem risos. O amor de mãe é um perigo: efemina a alma dum rapaz; é preciso separar mãe e filho, para que coisa alguma se oponha à sua comunhão com Deus. Torna-se necessário que a juventude saiba que a vida é esforço. Façam-na trabalhar (...); encham-na de aborrecimento. Que seja banido tudo quanto possa despertar-lhe interesse: só é proveitoso o trabalho desinteressado; se nele se mistura prazer, está tudo perdido!’
Eis o que disse o diabo. A multidão, beijando a terra, exclamou:
- Queremos-nos salvar! Que devemos fazer?

- Criem a escola.” (...)

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