terça-feira, 13 de janeiro de 2015

As raizes fascistas do ensino dual

A ideia de escola dual, em que cada aluno é encaminhado para o percurso que "mais se adequa às suas competências" não é uma invenção do ministério do Crato. A segregação social dos alunos foi uma realidade portuguesa, e os objectivos de uns e outros são análogos.

"Marcello Caetano baseava a condenação da escola única numa curiosa teoria sobre a origem da inteligência. Não só acreditava na diferença inata das capacidades individuais, como sustentava que «as ideias, as noções, as experiências vão-se elaborando através umas poucas de gerações até florir em determinada altura, na pessoa de um dos membros da linhagem [...], a gestação duma inteligência superior é trabalho de muitos anos, de séculos até». O mérito e a classe social encontravam-se, assim, inteiramente relacionados; a estrutura social, divinamente instituída, tinha um fundamento psicológico. Pensar bem requeria um prolongado exercício mental e uma preparação estranhos às classes inferiores; por conseguinte, ao nascer nelas, uma criança só muito dificilmente conseguiria ascender na escala social.
Deste modo, M. Caetano, reconhecia, e aceitava, o papel que os factores sociais desempenhavam no desenvolvimento intelectual, mas para negar a possibilidade de mobilidade ascendente. Nas suas próprias palavras: «Uma criança inteligente, filha de um operário hábil e honesto, pode, na profissão de seu pai, vir a ser um trabalhador exímio, progressivo e apreciado, pode chegar a fazer parte do escol da sua profissão, e assim deve ser.» Cada classe possuía a sua hierarquia interna, nos limites da qual o mérito contava. Num sentido mais lato, porém, o status era herdado.
Nestas condições, a escola única acarretaria desastrosas consequências para os indivíduos que através dela se promovessem. Filho de operário que «subisse» por intermédio da «escada educacional» pagava um alto
preço: «Seleccionado pelo professor primário para estudar ciências para as quais o seu espírito não tinha a mesma preparação hereditária que tinha para o ofício, não passaria nunca de um medíocre intelectual, quando muito um homem sábio, mas incapaz de singrar na vida nova que lhe [haviam indicado] sem o ouvir.»
(...)
Inesperadamente, o ministro da Instrução, Eusébio Tamagnini, forneceu uma base «científica» a esta nova ideologia inigualitária. Alegando que o psicólogo americano Terman provara que o nível mental dos alunos era variável, Tamagnini concluía que a população escolar portuguesa se dividia em cinco grupos: 
- ineducáveis (8 %),
-  normais estúpidos (15 %),
- inteligência média (60 %),
- inteligência superior (15 %) e
- notáveis (2 %).
Por conseguinte, os ideais democráticos baseavam-se em permissas contraditórias e biologicamente falsas. A escola única não passava de um absurdo. 
A doutrina oficial declarava a igualdade impossível e os regimes democráticos indesejáveis e contra natura, porque impediam, na escola e na sociedade, que os «talentos» brilhassem e se desenvolvessem. Ao aniquilar a harmoniosa estrutura do ancien regime e ao erguer em seu lugar o indivíduo isolado e omnipotente, a democracia conduzia, em última análise, ao comunismo. Além disso, as várias classes sociais não tinham apenas capacidades desiguais, mas tradições e necessidades próprias. A existência de culturas de classes específicas (e hierarquizadas) serviu aos ideólogos situacionistas de novo argumento a favor de um sistema escolar diferenciado: seria um erro crasso «dar ao quarto estado a instrução do terceiro, do segundo ou do primeiro» 

In Maria Filomena Mónica: "«Deve-se ensinar o povo a ler?»:a questão do analfabetismo (1926-39)" (Análise Social, vol, XIII (50), 1977-2.°, 321-353)

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