Um texto da autoria do Prof. José Pacheco, da Escola da Ponte, um alerta para alguns escorregadios atalhos "pedagógicos" que se insinuam nas bermas dos trilhos da educação mas que mais cedo que tarde se revelam coisa perversa.
A escola é um lugar onde os professores podem aprender
A
sociedade quis, o Homem pensou, o diabo a inventou. Aí temos a Escola. Ao longo
de mais de dois séculos, instalou-se, estendeu tentáculos, fossilizou-se.
Inútil e perversa, resiste ao curso da História. Inventou estratégias de
sobrevivência, gerou anticorpos, resistiu a crises e síndromes que conduziram à
falência instituições tão caducas quanto ela. Injectam-lhe decretos, mas a
Escola, tal como a ostra perante a presença de um grão de areia, aprendeu a
contornar. E as pérolas que produzem são amostras sem valor, réplicas tão
inócuas quanto as redundâncias teóricas, as inconsequentes experiências de inovação
e as correntes que as inspiraram. Velha e matreira, a Escola aprendeu a legitimar-se.
Beneficiou de implantes e cosméticas que lhe alteram o rosto sem lhe modificar
as entranhas.
Alguns
anestésicos discursos neo-liberais incitam à devolução da Escola à comunidade. Mas
onde está a “comunidade”? Como se pode promover um diálogo se não há interlocutores?
Até por dentro, as escolas são arquipélagos de solidões, jangadas de pedra à
deriva! E todo o professor que aspire a ser solidário, terá (como diria o meu amigo
Pedro) de se imaginar um navegador solitário.
O
problema não é novo. Há cerca de vinte anos, era publicado um despacho para “obviar
às dificuldades sentidas na aplicação do despacho 274/81” que dificultavam ou
impediam “a colaboração entre docentes” e admitia-se que tinham sido criadas “situações
compulsivas de ensino em equipa e de cooperação”. Concluía o despacho que o “
processo de colocação de professores (...) bem como os problemas decorrentes da
sua formação, pouco orientada para uma pedagogia activa (...) agravam ainda
mais a situação”.
A
escola é um lugar onde os professores podem aprender. Só é preciso que estejam atentos.
A ideia de que o ensino é um ofício e que a pedagogia é, como diria o outro, a arte
de ensinar tudo a todos como se fosse um só, confere alguma tranquilidade, pois
permite manter a crença nas virtudes de um ensino tradicional, as expectativas
e representações sobre as escolas. São ignorados os "efeitos
colaterais" das práticas ditas tradicionais e a sua inadequação às
transformações sociais a que assistimos desde há mais de um século.
No
princípio do século XX, Adolfo Lima afirmou que “uma reforma radical é talvez possível,
mas que uma reforma não radical é inútil”. Um século decorrido sobre a sua sábia
afirmação, é a cultura das escolas que continua a estar em causa e urge transformar.
É também a cultura pessoal e profissional dos professores que é preciso reelaborar.
É preciso saber o que podemos ainda fazer da Escola com aquilo que fizeram
dela. Se concordarmos com Pestalozzi, que (há dois séculos!) disse que “professor
que não avança, recua”, façamos a nós próprios algumas perguntas:
A
cultura das nossas escolas já será pautada pela cooperação entre os
professores? Será possível conciliar a ideia da articulação entre ciclos com o
trabalho do professor isolado física e psicologicamente na sua sala de aula,
cativo de uma racionalidade que preside à manutenção de um tipo de organização
da escola que limita ou impede o desenvolvimento de culturas de cooperação?
Será possível conciliar a ideia da articulação entre ciclos com a ausência de
tempos e espaços de encontro nas escolas provocada por diferentes componentes
lectivas, reduções ou acumulações? Poderemos permitir que uma escola básica
“democrática” seja dominada por práticas de natureza selectiva? Poderemos
permitir que uma escola básica preocupada com a formação para a cidadania
recorra a modelos epistemológicos normativos e conformistas? Poderemos permitir
que uma escola básica preocupada com a relação entre saber escolar e sociedade
se limite a reproduzir informação socialmente inútil? Será possível conciliar a
ideia da articulação entre ciclos com a inexistência de projectos educativos
que suportem uma efectiva autonomia pedagógica? Poderemos permitir que uma
escola disposta a correr os riscos da autonomia aceite continuar a ser uma
extensão local controlada pelo centro do sistema? Ainda não nos demos conta de
que a mentalidade curricular tarda em ocupar o espaço de uma monodocência
(redutoramente entendida) e da compartimentação disciplinar que dificultam o
diálogo horizontal e vertical na educação básica? Quanto tempo mais irá
manter-se a monodocência no primeiro ciclo e a atomização curricular nos
restantes ciclos? Por que razão se mantêm profundas diferenças de cultura entre
professores de diferentes segmentos de escolaridade? Se é mais o que une que o
que separa os segmentos do sistema, porque há segmentação? E porque tratamos
como bodes expiatórios os ciclos que estão a montante do nosso? Já agora, por
que não interrogar a nossa cultura pessoal e profissional? Até quando insistiremos
teimosamente em equívocos, meias-medidas e ideias-feitas? Para se refundar a
educação básica não teremos de repensar a Escola?
Sem comentários:
Enviar um comentário